Boletim informativo do Jusclima2030
Fevereiro de 2022

No curso do mês de fevereiro de 2022, teve início audiência aberta perante a Suprema Corte dos Estados Unidos, no âmbito de um litígio climático que poderá ter implicações significativas não só ao contexto norte-americano, mas, cientes todos da realidade do sistema climático como uma unidade planetária e integrada, ao enfrentamento da emergência climática como um todo. O caso merece, portanto, nossa total e irrestrita atenção.

West Virginia versus Agência de Proteção Ambiental – EPA – aborda o poder de atuação dado pelo Congresso à EPA para policiar e regular as emissões de gases de efeito estufa (GEE) do setor elétrico. Este caso, a depender de seu desfecho final, terá impacto na agenda climática dos Estados Unidos e implicações de longo prazo em outras agências governamentais, em todos os âmbitos. A análise constitucional que for conformada pela Suprema Corte americana moldará a capacidade dos demais órgãos federais na regulação da assistência à saúde, segurança no trabalho, telecomunicações e setor financeiro, por exemplo.

O foco central da ação é o poder de polícia e a extensão de autonomia da EPA e de todas as agências similares. Pode-se restringir ou até mesmo eliminar a autoridade da agência para controlar a poluição em um momento em que relatórios do Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC – dão conta de que a mudança climática é obra humana e está em um ponto de quase não retorno[1]. O pedido envolve questões de direito ambiental e administrativo e se centra nas escolhas que a EPA pode fazer ao decidir como regular as emissões de GEE de usinas de energia elétrica, que atualmente respondem por 25% do total de emissões nos EUA, um dos grandes emissores per capita de GEE. A geração de eletricidade é a segunda maior fonte de emissões de gases de efeito estufa nos Estados Unidos, atrás dos transportes terrestre, aéreo e marítimo.

Em 2015 o presidente Barack Obama introduziu a política chamada Clean Power Plan, que propôs reduzir as emissões do setor de energia e mudar a matriz energética americana de carbono para energias limpas de modo gradativo. A disputa legal começou quando o presidente anunciou o Clean Power Plan como sua principal estratégia para combater as mudanças climáticas. Citando sua autoridade sob a Lei do Ar Limpo, ou Clean Air Act, o governo Obama planejava exigir que cada Estado federado reduzisse as emissões de dióxido de carbono do setor elétrico, principalmente pela substituição de usinas a carvão por fontes eólicas, solares e outras fontes limpas. Segundo Shaun A. Goho – professor de direito e vice-diretor e advogado sênior da Emmett Environmental Law and Policy Clinic da Harvard Law School – que atuou na ação representando um amicus curiae – em suas alegações orais:

A nova regra teve uma visão sistemática do papel da agência na regulação das emissões do sistema de energia, baseando seus padrões de emissões em três ‘blocos de construção’. Esses blocos de construção incluíam não apenas a redução da intensidade de carbono da geração de eletricidade em uma usina de energia, mas também ações que ocorrem “além da cerca” de qualquer usina de energia individual, como mudar a geração de energia de usinas a carvão para usinas de gás natural ou renováveis. Com base no que foi alcançado por meio dessas medidas, a EPA estabeleceu metas estaduais para reduzir as emissões gerais. O regulamento também deu poderes à EPA para agir se os estados não o fizessem.

O governo Obama invocou a Seção 111(d) da Lei do Ar Limpo, cuja interpretação está em disputa neste caso, diz Goho. “Essa disposição permite que a EPA estabeleça diretrizes de emissões para fontes estacionárias existentes de poluição do ar que se baseiam no ‘grau de limitação de emissão alcançável através da aplicação do melhor sistema de redução de emissões’ que foi ‘adequadamente demonstrado’.[2]


Os principais argumentos na regulamentação da EPA

Vários grupos da indústria e procuradores-gerais estaduais republicanos imediatamente entraram com uma ação, argumentando que a EPA havia excedido sua autoridade no Congresso. Os autores do caso, West Virginia v. EPA, querem que a alta corte bloqueie o tipo de mudanças radicais no setor elétrico definido pelo Plano de Energia Limpa de Obama.

Lembramos que a Suprema Corte emitiu uma suspensão – o que impediu que a política entrasse em vigor – até que o tribunal de primeira instância tivesse a chance de opinar (algo raro de acontecer). Em novembro de 2016, concordou em suspender sua decisão quando a EPA reconsiderou sua política. Por fim, encerrou o caso.

Não obstante, na administração Trump, a EPA mudou de rumo e manifestou não ter autoridade para emitir os regulamentos mais amplos reivindicados pelo Plano de Energia Limpa da era Obama. Emitiu uma nova política, a regra Affordable Clean Energy (ACE), que estabelece diretrizes de emissões com base apenas em elementos que podem ser alcançados por meio de equipamentos e tecnologia. Esta nova regra trouxe contestações legais de estados e cidades democratas, além de conhecidos defensores do meio ambiente, associações comerciais de energia renovável e algumas empresas de energia. Isso deixou a EPA, agora sob Biden, a depender de sua própria norma, que ainda não foi emitida. Apesar disso, Virgínia Ocidental, Alabama, Alasca e outros estados de energia a carvão, juntamente com empresas de carvão e uma cooperativa elétrica com sede em Dakota do Norte, pediram à Suprema Corte que revisasse a decisão do Circuito de DC.

“Se o tribunal exigisse que a EPA tivesse uma direção muito específica e estreita para lidar com os gases de efeito estufa, como uma questão prática, poderia ser devastador para as habilidades de outras agências de aprovar regras que salvaguardam a saúde pública e o bem-estar da nação”, disse Richard Lazarus, professor de direito ambiental em Harvard. “Restringiria a promulgação de regulamentos sob qualquer série de estatutos federais — OSHA, a Lei da Água Limpa, a regulamentação de resíduos perigosos. Em teoria, poderia até limitar a autoridade do Federal Reserve Board (FED) para definir taxas de juros.”[3]

É a chamada “teoria das questões-chave”. Essa teoria expressa um conceito de senso comum: quando o Congresso pretende decidir as questões-chave de consequências econômicas e políticas significativas, pelo menos deixará claro – no texto da lei de empoderamento – que a instituição deve funcionar. Caso contrário, o tribunal assumirá que o Congresso tem o poder de decidir questões importantes. O que mais chama atenção na jurisprudência dos casos similares na Suprema Corte americana é que o caso gira em torno de uma hipotética regulação futura, e a Suprema Corte não costuma aceitar levar a julgamento.

As empresas de energia expressaram que preferem o tipo de flexibilidade oferecida sob o plano Obama, que lhes permitiria reduzir as emissões, fazendo mudanças em toda a rede elétrica — desligando algumas usinas, tornando outras mais eficientes e expandindo energias eólica e solar. Elas resistem em serem obrigadas a fazer mudanças altamente prescritas em usinas de energia individuais, que os queixosos argumentam ser o único tipo que a administração pode ordenar, pelo fato de que, dizem, haveria aumento de custos.

Segundo o resumo que consta no Congresso americano, as principais controvérsias apresentadas à Suprema Corte são quatro casos consolidados acerca da autoridade da EPA para regular as emissões sob o Clean Air Act. A Seção 111(b) da lei orienta a EPA a identificar fontes que contribuem significativamente para a poluição do ar e a estabelecer padrões de emissão para poluentes emitidos por essas fontes. Na década de 1970, as usinas de energia foram identificadas como uma dessas fontes. A Seção 111(d) orienta o desenvolvimento de padrões de emissão para as categorias listadas. Um padrão de emissão deve refletir reduções alcançáveis ​​por meio da doutrina do “melhor sistema de redução de emissões” considerado cientificamente comprovado pela EPA.  

Dois documentos do congresso americano sintetizam com perfeição os principais argumentos e marcos teóricos para o julgamento da ação, sinteticamente elencados a seguir[4]:

1) Decisão de 2007 em Massachusetts v. EPA;  2) Esses achados formaram a base para os padrões de emissão de GEE veiculares leves e para as normas de economia média de combustível (CAFE) emitidas em conjunto pela EPA e pela National Highway Traffic Safety Administration; 3) Regulação de poluente de aviação da EPA; 4) Declaração do juiz Scalia referente à “interpretação inclusiva de gases de efeito estufa da EPA dos gatilhos PSD e Título V … [é] irracional porque provocaria uma enorme e transformadora expansão da autoridade regulatória da EPA sem uma autorização clara do Congresso”; 5) Análise do American College of Environmental Lawyers observou que, desde a década de 1970, a EPA promulgou as diretrizes de emissão sob a Seção 111(d) da CAA em sete ocasiões; 6) Controvérsia sobre a forma de medir o gasto de cada estado; 7) Controvérsia sobre o início do plano e período;  8) Os peticionários afirmam que alcançar as reduções de emissões necessárias é uma “tarefa impossível” para os estados;  9) Apoiadores da Fundação Legal do Pacífico e aliados afirmam que a EPA falhou em fazer a constatação de perigo necessária sob a Seção 111 da CAA:  “o caminho regulatório que o Congresso prescreveu para poluentes atmosféricos no ‘ar ambiente’ emitido a partir de ‘inúmeras ou diversas fontes’”; 10) Grupos que representam idosos, minorias e mulheres argumentam, entre outros pontos, que “os planos da EPA para incentivar o investimento em comunidades de baixa renda não farão nada para ajudar aqueles que enfrentam aumentos imediatos nas tarifas de eletricidade.”


Qual o prognóstico esperado?

Diante de alarmantes relatórios científicos do painel da ONU para o Clima, vemos que estas questões regulatórias, por mais reflexos constitucionais que possuam, não impõem a verdade de que nosso futuro em um meio ambiente saudável está em jogo.  E esta decisão, acredita o professor Daniel Farber, terá uma resolução contrária à proteção climática:

Para ajudar a dar uma noção de como o tribunal vai decidir, Farber disse que as pessoas devem estar ouvindo as seguintes coisas que acontecerão durante o processo: algum dos juízes pergunta sobre a doutrina da não delegação, que é uma regra constitucional que poderia minar muita regulamentação? Suas perguntas tendem a se concentrar nas questões técnicas sobre a lei específica no caso? Ou eles acham que a regulamentação é muito grande e controversa para ser válida? Algum deles demonstra qualquer simpatia pelos argumentos de que as questões no caso não estão maduras para uma decisão, uma vez que a Administração Biden nem sequer disse que tipo de regulação ele pode procurar emitir?[5]

A teoria da Athmospheric Trust Litigation, que informou alguns dos precedentes mais expressivos em termos ambientais americanos[6], não está tão forte atualmente. Mesmo diante de movimentos de outros países e blocos econômicos como a União Europeia – que mudou radicalmente sua legislação e se propõe a cumprir o Acordo de Paris à risca, contribuindo para evitar o aumento climático de mais de 1,5 graus celsius –, os Estados Unidos tenderão a refletir na sua Suprema Corte uma compreensão de descaso com o meio ambiente e com a saúde de seus cidadãos. Se, no mundo, várias ações climáticas fazem o turn point, como Urgenda[7] e Neubauer[8], a perspectiva de que a agência regulatória ambiental americana tenha seu poder cerceado é real, sob o que parece ser um falso argumento de que haveria tecnologia para reduzir os danos da emissão de carbono em tempo hábil. O pacto de Paris agora parece, portanto, bem distante da Suprema Corte nos Estado Unidos.

Como lembra a professora Mary Wood no seu poderoso artigo “Na véspera da Destruição: Tribunais confrontando a emergência climática”[9]:

Uma coisa é clara. Contra uma perspectiva indescritivelmente cruel de morte global maciça e miséria subscrita por líderes mundiais em sua contínua promoção de combustíveis fósseis, juízes de qualquer nação podem não mais evitar escolher seu lado da história — pois a passividade judicial é tanto uma escolha clara quanto uma intervenção judicial. Como o Dr. James Hansen, ex-cientista climático da NASA, alertou: ‘Falha em agir com toda a velocidade deliberada… funcionalmente torna-se uma decisão de eliminar a opção de preservar um sistema climático habitável’.

Se, em dez anos, o sistema climático estiver bem no caminho de sua recuperação, pode ser porque os juízes deste mundo perceberam que sua hora de agir é agora.


E o Brasil?

Temos no país um grande impacto desta ação, porque estamos na mesma tensão entre o controle estatal da regulação ambiental e o maior ou menor cerceamento das agências de proteção em suas atividades. Esta ação americana com certeza impactará como nosso Congresso avaliará futuras ações das agências regulatórias.

Equipe JusClima2030

Nesta edição colaboraram as Magistradas Federais Luciana Dias Bauer e Rafaela Santos Martins da Rosa.


[1] INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE – IPCC Reports. 2022. Disponível em https://www.ipcc.ch/ Acesso 05 de mar 2022.

[2] REED, Rachel, Harvard Law Today https://today.law.harvard.edu/scotus-preview-west-virginia-v-epa/

[3] TOTENBERG, Nina; ELLINGSON, Ryan. Supreme Court to hear a case that could limit the EPA’s power to fight climate change. NPR, 2022. Disponível em: <https://www.npr.org/2022/02/28/1082934438/supreme-court-to-hear-a-case-that-could-limit-the-epas-power-to-fight-climate-ch>. Acesso em: 8 de mar. de 2022.

[4] Clean Power Plan: Legal Background and Pending Litigation in West Virginia v. EPA Linda Tsang Legislative Attorney Alexandra M. Wyatt Legislative Attorney. CRS Sidebar. 8 de mar. de 2017. Disponível em https://sgp.fas.org/crs/misc/R44480.pdf

Congress’s Delegation of “Major Questions”: The Supreme Court’s Review of EPA’s Authority to Regulate Greenhouse Gas Emissions May Have Broad Impacts. CRS Sidebar. 7 de dez. de 2021. Disponível em https://crsreports.congress.gov/product/pdf/LSB/LSB10666

[5] CRONIN, Daniel. Deep Dive on West Virginia v. EPA. Carbon Tracker Initiative. Disponível em: https://carbontracker.org/deep-dive-on-west-virginia-v-epa . Acesso em: 8 mar. 2022.

[6] ESTADOS UNIDOS. The United States Department of Justice. Massachusetts versus Environmental Protection Agency.Disponível em: https://www.justice.gov/enrd/massachusetts-v-epa . Acesso em: 9 jan. 2021

[7] Urgenda Action <https://uitspraken.rechtspraak.nl/inziendocument?id=ECLI:NL:GHDHA:2018:2610 Em inglês, disponível em:

http://climatecasechart.com/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-us-case-documents/2020/20200113_2015-HAZA-C0900456689_judgment.pdf

[8] Neubauer Action. Em inglês, disponível em: http://climatecasechart.com/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-us-case-documents/2021/20210429_11817_judgment-1.pdf

[9] WOOD, Mary. On the Eve of Destruction: Courts Confronting the Climate Emergency Indiana Law Journal, Vol. 97, No. 1, 2022. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4017861