Resumo
Elaborado pela equipe do JusClima2030 em 21 de October de 2024Petição Inicial
Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra Daniel Ferrerira Matias, por meio da qual se discute responsabilidade civil por danos ambientais florestais e climáticos ocasionados pelo desmatamento ilícito do total de 117,00 hectares de áreas inseridos no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Antimary, no município de Boca do Acre/AM.
Como narrativa fática, a inicial refere que segundo apurado no Inquérito Civil n. 1.13.000.001719/2015-49, o requerido foi responsável, entre os anos de 2014 a 2018, por desmatamento dentro do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Antimary, área de propriedade e interesse da União Federal, gerida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, destinada à implementação da Política Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e tradicionalmente ocupada por comunidades tradicionais – extrativistas de castanhas, dentre outros produtos florestais não-madeireiros.
Narrou que a área de desmatamento consolidado somava 13.921,98 hectares até 2018, com diversos registros de Cadastros Ambientais Rurais (CARs) sobrepostos ao PAE Antimary, o que ensejou a expedição da Recomendação n°2/2019/FT-AMAZÔNIA/PR/AM encaminhada ao IPAAM, com vistas ao cancelamento de todos os registros CAR incidentes sobre o referido projeto de assentamento “a recomendação foi acatada pelo IPAAM, que promoveu, em 2019, o cancelamento de todos os CARs então incidentes sobre o PAE Antimary que não fossem titularizados por beneficiários vinculados ao PAE, já que o projeto de assentamento, por sua modalidade, não admitia divisão em lotes, destinando-se ao exercício coletivo de atividades extrativistas”.
Afirmou que os desmatamentos, queimadas e as atividades de pecuária extensiva são incompatíveis com a vocação extrativista do PAE Antimary, uma vez que a subsistência das comunidades tradicionais do projeto depende da floresta intacta, para suas atividades produtivas de base sustentável.
Sintetiza a parte autora referindo que a parte ré seria responsável pelo desmatamento ilícito de 117,00 hectares de floresta nativa na Amazônia, dentro de território tradicional de comunidades extrativistas; com liberação de 180,21 toneladas de carbono na atmosfera por hectare desflorestado. Segundo critérios de cálculo trazidos pelo MPF, o desmatamento ilegal resultou na emissão de “21.084,57 toneladas de carbono, ou de 77.296,03 de toneladas de gás carbônico para o período de 2012 a 2018”, o que representaria “2% das emissões de gases de efeito estufa relacionadas a mudanças do uso da terra no Município de Boca do Acre/AM no ano de 2018”, concorrendo de forma direta para o agravamento das mudanças climáticas.
Como narrativa jurídica, o MPF pretende o reconhecimento de responsabilidade civil por danos ambientais florestais e climáticos, nos termos do art. 225, §3º, da Constituição Federal e art. 14, §1°, da Lei n°6.938/1981, com a condenação da parte ré na reparação integral do dano, mediante:
i) obrigações de não fazer, para abster-se de inserir no CAR e no SIGEF pretensões de posse de natureza ilícita sobrepostas ao PAE Antimary ou quaisquer terras públicas, bem como em abster-se de promover desmatamento em terras públicas sem autorização para tanto; ii) declaração de nulidade do Cadastro Ambiental Rural incidente sobre o PAE Antimary; iii) obrigação de fazer, consistente na elaboração de Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (PRAD) para a área total desmatada, segundo as especificações e prazos da petição inicial; iv) subsidiariamente à obrigação de recuperação in natura e na hipótese de não cumprimento desta obrigação, pagamento de indenização compensatória da restituição do meio ambiente ao status quo ante, no valor indicado na inicial; v) cumulativamente aos pedidos anteriores, o pagamento de indenização por danos materiais ambientais intermediários e residuais, no importe discriminado; vi) ainda cumulativamente, no pagamento de indenização por danos climáticos, no valor que segue a metodologia descrita na inicial; e vii) ainda cumulativamente, no pagamento de indenização por danos morais coletivos.
Por fim, o autor ainda pede a inversão do ônus da prova ab initio, quando também pontuou não haver interesse em conciliar.
Apesar de ter sido regularmente citado, o réu não apresentou contestação.
Sentença
Em 20 de setembro de 2024 foi proferida sentença nos autos. A sentença julgou procedentes os pedidos, condenando o réu:
a) ao cumprimento da obrigação de recompor a área degradada (117,00 hectares), conforme Plano de Recuperação de Área Degradada (PRAD) assinado por profissional habilitado, com anotação de responsabilidade técnica (ART), cabendo ao órgão ambiental avaliar e aprovar o PRAD, bem como acompanhar a sua execução.
Fixo para cumprimento dessa obrigação o prazo de 90 (noventa) dias, a contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de multa mensal de R$ 1.000,00 (mil reais), até atingir o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) (art. 537 do Código de Processo Civil). Em caso de mora, ficam os requerentes autorizados a realizar as intervenções necessárias à melhor recomposição do bem ambiental, quando poderão se valer da colaboração de entidades públicas e privadas, com a possibilidade de conversão da obrigação de fazer em obrigação de pagar, considerado o valor total despendido nessa finalidade (arts. 497 e 499 do Código de Processo Civil). Fica o réu proibido, desde já, de utilizar a área, de modo a permitir sua regeneração natural, estando os órgãos de fiscalização ambiental autorizados a promover a apreensão, retirada e destruição de qualquer bem móvel ou imóvel que esteja na área e que esteja impedindo sua regeneração natural.
b) ao pagamento de indenização por danos materiais referentes aos danos ambientais interinos e residuais, em valor a ser apurado na fase de liquidação de sentença.
c) ao pagamento de indenização por danos climáticos causados pelo desmatamento, no valor de R$ 2.127.960,22.
d) ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 409.500,00.
Na sentença, no que respeita ao reconhecimento do dano climático, observou-se:
“Há um consenso científico quase universal () de que a crise climática é uma realidade imposta e causada predominantemente por atividades antropogênicas que resultam em massivas emissões e altas concentrações de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. As mudanças climáticas com aumento da temperatura média da Terra são definidas como um fator multiplicador de riscos diversos, atrelados à intensificação e à alta frequência de eventos climáticos extremos – como no exemplo das devastadoras enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul, ainda no início deste ano, bem como na severa seca que castiga os povos e o ecossistema da Amazônia Legal brasileira. Provocadas pelo aumento da temperatura média da Terra, as mudanças climáticas se apresentam como fator multiplicador de riscos e ameaças que desafiam as instituições estatais e geram insegurança social, comprometendo os esforços civilizatórios para a concretização de direitos humanos, com destaque ao direito à vida digna, à saúde, e ao meio ambiente sadio e equilibrado. Tomando por referência a severidade da seca que castiga os povos e o ecossistema da Amazônia, os eventos climáticos extremos apresentam inegável potencial destruidor () que inclui escassez hídrica; ondas de calor extremo, com sobrecarga no sistema de saúde pública; danos às infraestruturas públicas, o que inclui transporte fluvial; abalo aos sistemas de produção e abastecimento, com aumento da insegurança alimentar (); e incremento da desigualdade e pobreza, com drásticas consequências sociais, econômicas e orçamentárias (). O cenário é ainda mais dramático pelo agravamento dos incêndios florestais que, além das massivas emissões de gases de feito estufa e poluição do ar, podem levar o bioma ao ponto de não retorno.
Segundo o MPF, dano climático dos autos consiste na perturbação permanente ou temporária dos serviços climáticos prestados pela floresta, causado pelos desmatamentos e degradação florestal ilegais. Este conceito está alinhado com o conceito de dano climático entendido como lesão ao sistema climático. Sobre a temática, o Brasil é parte na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, internalizado no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n°2.652/1998, além de ser signatário de outros instrumentos jurídicos internacionais pactuados no contexto da Convenção Quadros, com destaque ao Acordo de Paris, no qual o país assumiu compromisso de apresentar suas contribuições nacionalmente determinadas (NDCs), capazes de concorrer para o objetivo final de “estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático” (art. 2 da UNFCCC). Por reconhecer o sistema climático como bem jurídico tutelável, a Lei n°12.187/2009, ao instituir a Política Nacional sobre a Mudança do Clima (PNMC), estabelece que “todos têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático” (art. 3º, inciso I). Ainda, ao interpretar “o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, direito fundamental de caris intergeracional (arts. 5º, §2º e 225 da Constituição Federal), no julgamento da ADPF n. 708, o Supremo Tribunal Federal na assentou que o combate às mudanças climáticas configura dever de natureza jurídica vinculante. No caso dos autos, o dano climático foi provocado por desmatamento e degradação florestal, que são a causa direta e individualizável de supressão ilegal de estoques e sumidouros de carbono, bem como emissões ilegítimas de GEE que se somam a outras emissões, concorrendo de forma eficaz e direta para uma interferência anormal e deletéria no sistema climático. Reconhecida a existência de um dano climático, passa-se à análise da pretensão de responsabilidade civil. Aqui, a doutrina preleciona que a responsabilidade civil por dano climático tem lugar quando possível a identificação da fonte emissora e nexo de causalidade entre emissão e dano: “quanto ao dano climático direto, atual e consumado, deve-se consignar sobremaneira que se trata de um dano em curso, de nítido efeito cumulativo e progressivo, que se acresce a cada nova emissão. Este dano possui fonte causal já conhecida e identificada como fato estabelecido. O dano climático direto é, por conseguinte, o resultado de um somatório individualizável de emissões e de supressões de sumidouros, que obviamente ocorrem em diferentes espaços e sob distintas jurisdições, sendo o seu nexo causal aclarado de modo escorreito pela robusta informação científica à disposição de todos, inclusive dos operadores jurídicos” (ROSA, Rafaela Santos Martins da. Dano climático: conceito, pressupostos e responsabilização. Ed. Tirant lo BLanch. São Paulo: 2023).