Resumo
Elaborado pela equipe do JusClima2030 em 21 de October de 2024Petição Inicial
Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra Nilma Félix, por meio da qual se discute responsabilidade civil por danos ambientais florestais e climáticos provocados pelo desmatamento ilícito de 135,80 hectares de Floresta Amazônica, em área inserida no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Antimary, arrecadada e afetada pelo INCRA aos fins de atividades agroextrativistas, no município de Boca do Acre/AM.
Como narrativa fática, a inicial refere que segundo apurado no Inquérito Civil n°1.13.000.001719/2015-49, entre os anos de 2014 a 2018, a ré foi responsável pelo desmatamento ilegal no interior do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Antimary, área da União Federal, gerida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, destinada à implementação da Política Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e tradicionalmente ocupada por comunidades tradicionais – extrativistas de castanhas, dentre outros produtos florestais não-madeireiros. Descreveu que “o PAE Antimary é área de especial interesse do Ministério Público Federal desde 2018, quando da criação da Força Tarefa Amazônia” em razão de notícias “dando conta de invasões dentro da área pública e de desmatamentos ali perpetrados, com destaque para o abate de castanheiras utilizadas por comunidades tradicionais da região”.
Narrou que “a recomendação foi acatada pelo IPAAM, que promoveu, em 2019, o cancelamento de todos os CARs então incidentes sobre o PAE Antimary que não fossem titularizados por beneficiários vinculados ao PAE, já que o projeto de assentamento, por sua modalidade, não admitia divisão em lotes, destinando-se ao exercício coletivo de atividades extrativistas”. Afirmou que os desmatamentos, queimadas e as atividades de pecuária extensiva são incompatíveis com a vocação extrativista do PAE Antimary, uma vez que a subsistência das comunidades tradicionais do projeto depende da floresta intacta, para suas atividades produtivas de base sustentável.
Sintetiza a parte autora referindo que a parte ré seria responsável pelo desmatamento ilícito de 135,80 hectares de floresta nativa na Amazônia, dentro de território tradicional de comunidades extrativistas; com liberação de 155,67 toneladas de carbono na atmosfera por hectare desflorestado. Segundo critérios de cálculo trazidos pelo MPF, o desmatamento ilegal resultou na emissão de “21.139,99 toneladas de carbono, ou de 77.583,75 de toneladas de gás carbônico no ano de 2018”, o que representaria “2% das emissões de gases de efeito estufa relacionadas a mudanças do uso da terra no Município de Boca do Acre/AM no ano de 2018”, concorrendo de forma direta para o agravamento das mudanças climáticas.
Como narrativa jurídica, o MPF pretende o reconhecimento de responsabilidade civil por danos ambientais florestais e climáticos, nos termos do art. 225, §3º, da Constituição Federal e art. 14, §1°, da Lei n°6.938/1981, com a condenação da parte ré na reparação integral do dano, mediante:
i) obrigações de não fazer, para abster-se de inserir no CAR e no SIGEF pretensões de posse de natureza ilícita sobrepostas ao PAE Antimary ou quaisquer terras públicas, bem como em abster-se de promover desmatamento em terras públicas sem autorização para tanto; ii) declaração de nulidade do Cadastro Ambiental Rural incidente sobre o PAE Antimary; iii) obrigação de fazer, consistente na elaboração de Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (PRAD) para a área total desmatada, segundo as especificações e prazos da petição inicial; iv) subsidiariamente à obrigação de recuperação in natura e na hipótese de não cumprimento desta obrigação, pagamento de indenização compensatória da restituição do meio ambiente ao status quo ante, no valor indicado na inicial; v) cumulativamente aos pedidos anteriores, o pagamento de indenização por danos materiais ambientais intermediários e residuais, no importe discriminado; vi) ainda cumulativamente, no pagamento de indenização por danos climáticos, no valor que segue a metodologia descrita na inicial; e vii) ainda cumulativamente, no pagamento de indenização por danos morais coletivos. Por fim, o autor ainda pede a inversão do ônus da prova ab initio, quando também pontuou não haver interesse em conciliar.
Apesar de ter sido regularmente citada, a ré, residente no Município de Monte Negro-RO, não apresentou contestação.
Sentença
Em 20 de setembro de 2024 foi proferida sentença nos autos. A sentença julgou procedentes os pedidos, condenando a ré:
a) ao cumprimento da obrigação de recompor da área florestal desmatada (135,80 hectares), conforme Plano de Recuperação de Área Degradada (PRAD) assinado por profissional habilitado, com anotação de responsabilidade técnica (ART), cabendo ao órgão ambiental avaliar e aprovar o PRAD, bem como acompanhar a sua execução. Fixo para cumprimento dessa obrigação o prazo de 90 (noventa) dias, a contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de multa mensal de R$ 1.000,00 (mil reais), até atingir o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) (art. 537 do Código de Processo Civil). Em caso de mora, ficam os requerentes autorizados a realizar as intervenções necessárias à melhor recomposição do bem ambiental, quando poderão se valer da colaboração de entidades públicas e privadas, com a possibilidade de conversão da obrigação de fazer em obrigação de pagar, considerado o valor total despendido nessa finalidade (arts. 497 e 499 do Código de Processo Civil). Fica o réu proibido, desde já, de utilizar a área, de modo a permitir sua regeneração natural, estando os órgãos de fiscalização ambiental autorizados a promover a apreensão, retirada e destruição de qualquer bem móvel ou imóvel que esteja na área e que esteja impedindo sua regeneração natural. b) ao pagamento de indenização por danos ambientais interinos e residuais, em valor a ser apurado na fase de liquidação de sentença. c) ao pagamento de indenização por danos climáticos, no valor de R$ 2.133.553,12 (dois milhões, cento e trinta e três mil, quinhentos e cinquenta e três reais e doze centavos). d) ao pagamento de indenização por danos morais coletivos na ordem de R$2.000,00 (dois mil reais) por hectare desmatado.
Na sentença, no que respeita ao reconhecimento do dano climático, observou-se:
“As atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitam o infrator a sanções penais e administrativas, além da obrigação de natureza civil de reparar os danos causados (art. 225, §3º, da Constituição Federal e art. 14, §1°, da Lei n°6.938/1981). Logo, todo aquele que causa dano ao meio ambiente fica sujeito à tríplice responsabilidade (penal, administrativa e civil). Como se sabe, o aumento das concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa natural, intensificando o aquecimento adicional da atmosfera e da superfície terrestre (ver: preâmbulo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima – Decreto n°2.652/1998). Conforme destacado acima, o desmatamento apresenta relação direta com as mudanças climáticas, pois sua prática leva à liberação de estoques de carbono que estavam armazenados na vegetação (“emissão”, conforme art. 2º, III, da Lei n°12.187/2009) e, ao mesmo tempo, à anulação de mecanismos que promoviam a absorção de gás carbônico (“sumidouro”, na forma do art. 2º, IX, da Lei n°12.187/2009). Da própria Lei n°12.187/2009 se extrai essa relação entre desmatamento e mudanças climáticas, já que “os Planos de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento nos biomas” são tidos como um dos instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima (art. 6º, III). Do mesmo modo, o Código Florestal (Lei n°12.651/2012) elenca entre seus princípios o compromisso soberano do Brasil com a preservação da integridade do sistema climático (art. 1º-A, parágrafo único, inciso I). À semelhança do que ocorre com o dano ecológico propriamente dito (LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental; do individual ao coletivo; teoria e prática. 7. ed. São Paulo: revista dos Tribunais, 2015. p. 104/105 e p. 113/114), quando se fala em dano climático também se está a falar em lesão ao meio ambiente natural enquanto interesse juridicamente tutelado. As normas acima corroboram o dever de reparação do dano climático que, dadas as suas especificidades, exigem que ele seja considerado como uma espécie de dano ambiental (ver, nesse sentido: ROSA, Rafaela Santos Martins da. Dano climático futuro e responsabilidade civil. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos [Tese de Doutorado], 2023. p. 298 e segs.). Essa relação de gênero e espécie entre dano ambiental e dano climático pode ser verificada na própria Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) n. 433/2021, que, ao instituir a Política Nacional do Poder Judiciário para o Meio Ambiente, reconhece a necessidade de se considerar nas condenações por dano ambiental o impacto desse dano na mudança climática global (art. 14)”.