Ministério Público Federal vs. União, Estado do Rio Grande do Sul e outros

Divulgue esta ação

Resumo

Elaborado pela equipe do JusClima2030 em 30 de junho de 2025

O Ministério Público Federal ingressou com Ação Civil Pública em face da União, do Estado do Rio Grande do Sul e dos municípios de Arroio do Meio, Bom Retiro do Sul, Colinas, Cruzeiro do Sul, Encantado, Estrela, Lajeado, Muçum e Roca Sales. A Ação possui dois objetivos centrais: 1) o reconhecimento da contribuição do Poder Público em relação aos danos advindos em razão dos eventos climáticos ocorridos em setembro e novembro de 2023 e abril/maio de 2024, ante a ineficiência/omissão governamental em relação às ações de adaptação climática, prevenção e preparação contra desastres; e 2) a definição das responsabilidades estabelecidas nas Leis n. º s 12.340/2010 e 12.608/2012, para que se determine à União, ao Estado do Rio Grande do Sul e aos municípios demandados a elaboração de planos de ação que contemplem, mediante providências incrementais, sucessivas e/ou simultâneas, a reconstrução das áreas atingidas com observância às necessidades de adaptação e resiliência climática.

Como narrativa fática, o Ministério Público Federal refere que o estado do Rio Grande do Sul, e mais especificamente o Vale do Taquari, estão sendo vitimados por desastres em decorrência de alagamentos e de inundações. Segundo o autor, a frequência e intensidade com que esses eventos climáticos extremos vêm ocorrendo indica serem resultantes da desregulação do clima em decorrência do incremento massivo das emissões de gases de efeito estufa por fatores antropogênicos.

Consoante o autor, a extensão e magnitude dos danos experimentados (econômicos, sociais e ambientais), sendo vários deles perenes e irreversíveis, colocaram em evidência a extrema exposição e vulnerabilidade das comunidades atingidas. Demonstraram, de outro lado, (i) a incapacidade dos réus em planejar e gerir adequadamente as consequências dos eventos climáticos extremos; (ii) a existência de uma governança climática falha e ineficaz, mediante sistemas de resposta e prevenção a emergências precários, incompletos ou ineficazes, que não dialogam adequadamente entre si, e que se revelam insuficientes ao adequado gerenciamento da crise.

A inicial faz um retrospecto dos mais recentes desastres envolvendo a região do Vale do Rio Taquari, mencionando a inundação de julho de 2020, a inundação de setembro de 2023, a inundação de novembro de 2023, e a inundação de abril/maio de 2024. O autor aponta elementos colhidos em inquérito civil e apurados na documentação anexada ao feito uma ´serie de omissões e deficiências no cumprimento dos deveres legais de prevenção e de preparo para desastres, assim como a ineficácia da resposta dada aos desastres. Menciona que a evacuação das áreas suscetíveis e a alocação dos moradores em locais de segurança deveria ter ocorrido de forma mais rápida e efetiva, evitando que permanecessem nas residências ou que a elas voltassem a fim de resgatar pertences. Narra que entre as reuniões preparatórias convocadas pelo CENAD, e a efetiva subida do nível das águas no evento de setembro de 2023, houve lapso temporal suficiente à preparação do Poder Público, o qual, caso estivesse efetivamente aparelhado, poderia ter evitado a superveniência de tantas mortes.

Reporta a inicial, a partir de dados coletados, a insuficiência da estrutura de pessoal nos órgãos dos municípios para o atendimento à população. Compilou documentos também para indicar que nos eventos vivenciados na região do Vale do Taquari, o desembolso de recursos públicos federais foi vultoso, mas quase nada direcionado especificamente à prevenção. Narra o autor que os montantes recebidos foram maciçamente destinados a ações de resposta, confirmando observação efetuada pelo Tribunal de Contas da União na TC 002.043/2022-0, que trata de auditoria operacional com vistas a avaliar a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, que aponta que dos investimentos destinados à gestão de riscos e desastres, 66,4% foram destinados a ações de recuperação, e apenas 32,6% à prevenção, e, considerando os recursos destinados a recuperação somente ao estado do Rio Grande do Sul em 2023 e 2024, infere o autor que o desequilíbrio é ainda maior.

Como narrativa jurídica, a inicial refere que a Constituição Federal estabelece em seu art. 21, XVIII, que compete à União planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações, e que o art. 6º da Lei nº 12.608/2012 determina que compete à União, dentre outros, coordenar o Sistema Nacional de Proteção e Defesa e Civil- SINPDEC. Sustenta que as competências estabelecidas na Lei nº 12.608/2012 qualificam o interesse federal subjacente à implementação de medidas preventivas e reparatórias em situações de desastre. Ressalta que a legitimidade passiva do Estado e dos Municípios defluem, de outro lado, do disposto, respectivamente, nos artigos 7º e 8º da Lei nº 12.608/2012. Invoca o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado (artigo 225 da CF 1988), a proteção à dignidade da pessoa humana, nos termos do disposto no art. 2º da Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), o dever de promover medidas voltadas à adaptação climática é, de outro lado, expressamente estabelecido no art. 4º da Lei nº 12.187/2009, a qual estabelece que a Política Nacional sobre Mudança do Clima- PNMC. Refere o disposto no art. 2º, III, da Lei nº 9.433/97, a qual regula a Política Nacional de Recursos Hídricos, e que estabelece, no que se refere à prevenção e defesa contra eventos hidrológicos críticos.

Menciona o autor, ainda, a Lei Estadual nº 10.350/94 (RS), regulamentando o artigo 171 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, que estabelece que a Política Estadual de Recursos Hídricos tem por objetivo promover a harmonização entre os múltiplos e competitivos usos de recursos hídricos, assim como o disposto na Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), a qual ao regulamentar o disposto no art. 182 da Constituição da República, que se refere à política de desenvolvimento urbano, é explícita no sentido de que a política urbana, a ser executada pelo Poder Público municipal tem, por diretrizes gerais, a ordenação e controle do uso do solo de forma a evitar a poluição e a degradação ambiental e a exposição da população a riscos de desastres (art. 2º, IV, “g” e “h”).

Refere o MPF a previsão do art. 3º-A, caput e § 2º, da Lei nº 12.340/2010, a qual estabelece que os Municípios incluídos no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, com as obrigações decorrentes do cadastramento. A inicial aborda o direito de participação em matéria ambiental, referindo o ODS 11 da Agenda 2030, os Marcos de Hyogo e de Sendai, e a perspectiva de justiça climática a ser implementada no caso.

Em sede de tutela provisória, requereu o MPF a concessão de tutela de urgência para determinar o cumprimento dos itens informados no item 5.1.1 da petição inicial:

– Fixação das diretrizes gerais para ações de prevenção nas áreas de risco e de recuperação nas áreas atingidas por desastres pela União, com transparência e clareza na definição das responsabilidades dos entes federativos (União, Estados e Municípios) quanto às suas obrigações diretas. É essencial assegurar que toda a população compreenda o papel específico de cada ente e as formas de acesso aos programas de auxílio;

– Estabelecimento de um canal ativo de comunicação entre os entes federados, com colaboração entre os três níveis de governo, para financiamento e manutenção de sistemas de alerta à população e a imediata implantação do sistema cell broadcast nos municípios, mediante aporte de recursos da União no que se refere à aquisição dos instrumentos tecnológicos iniciais, o Estado coordena a distribuição e integração regional, enquanto os Municípios operam e os mantém localmente;

– Os Municípios- com o apoio do Estado e da União, quando necessário- devem (i) identificar as pessoas desalojadas e desabrigadas, em especial, se todas foram incluídas nos programas emergenciais (auxílio reconstrução e outros) e o quantitativo de pessoas que irão depender de abrigos temporários até que seja encontrada uma solução definitiva de moradia; (ii) fornecer auxílios similares também às pessoas desalojadas (como distribuição de alimentos e roupas, inclusive com a entrega direta nos locais mais afastados) e (iii) providenciar a inclusão no CadÚnico das pessoas desabrigadas e desalojadas que se enquadrem nos critérios legais, para o acesso aos programas assistenciais e habitacionais correlatos;

– Manutenção de forma tripartite dos abrigos temporários em número suficiente, cabendo preferencialmente aos Municípios administrar e gerenciar os serviços necessários como limpeza, segurança e com os necessários padrões de segurança e variedade alimentar do ponto de vista nutricional, garantir acesso à saúde e à educação, estabelecendo que as decisões sobre o local de instalação e o funcionamento seja realizado de forma conjunta com os próprios desabrigados e estabelecendo a gestão participativa;

– Os Municípios disponibilizarão equipes de saúde, para o controle e adoção de medidas de segurança para prevenir transmissão de doenças e demais riscos que podem afetar a saúde das pessoas atingidas, e programas de saúde mental específicos, tanto para as pessoas em abrigos, como para as demais atingidas, considerando o financiamento tripartite do SUS, e sem prejuízo de contar com o auxílio de voluntários, de acordo com as diretrizes estabelecidas pela União;- Com base na cartografia já existente e na mancha de inundação identificada nos diversos mapas construídos após o último evento, e sem prejuízo de seu refinamento e atualização posterior, a adoção considerando critérios estabelecidos pelas defesas civis dos três entes de medidas necessárias para identificar as áreas de maior risco, interditar imóveis total ou parcialmente destruídos nesse locais e evitar que sejam novamente ocupadas;- Imediata inserção dos municípios que integram a presente demanda no cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, de que trata o art. 3º-A da Lei nº 12.340/2010, caso ainda não estejam;- Observância integral do Protocolo Nacional Conjunto para a Proteção Integral a Crianças e Adolescentes, Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência em Situação de Riscos e Desastres em todas as frentes de resposta e ação;

– Incorporar diretrizes e padrões internacionais de segurança climática para todos os contratos públicos de execução de obras destinadas à reconstrução. Deve ser adotado como nível de referência o evento climático mais extremo, acrescido de uma margem de segurança, para que as novas estruturas suportem condições adversas adicionais, garantindo a integridade em cenários climáticos severos;

– Estabelecer a realização de auditorias regulares que devem produzir relatórios públicos sobre o progresso das ações e a utilização dos recursos, garantindo transparência e o emprego adequado das verbas públicas. Esses relatórios deverão ser divulgados semestralmente e estar acessíveis aos órgãos de controle e, em versão em linguagem simples, disponíveis à população.

Foram igualmente requeridas medidas de médio (180 dias) e de longo prazo (em um ano). A inicial reforça a condição de processo estrutural da demanda, e pugna pela adoção de uma solução consensual ao feito.

Recebida a inicial e enviado o feito para o CEJUSCON, em 22 de julho de 2024 foi realizada a primeira audiência de conciliação. 

Na audiência, restou determinando:

Visando construir uma solução colaborativa e obter-se um painel da situação atual dos Municípios envolvidos diante das questões suscitadas nessa ação, o MPF comprometeu-se a apresentar quesitos objetivos até sexta-feira, dia 26/07/2024, para que os Municípios, Estado do Rio Grande do Sul e União juntem, em autos apartados, um para cada ente federado, as informações solicitadas acerca do que já foi feito e do que necessitam fazer, a contar de segunda-feira, dia 29/07/2024, com prazo até 12/08/2024 (segunda-feira).

Nestas condições, determino à Secretaria a autuação de ações vinculadas a esta ACP, na classe “PETIÇÃO”, uma para cada ente que conste do pólo passivo dessa demanda, procedendo a intimação acordada neste feito com data final em 12/08/2024. Os autos permanecerão neste Centro para continuidade do ato, com designação de nova sessão de conciliação, após a juntada das informações pelos envolvidos.

Em 07 de agosto de 2024 a Associação Nacional dos Atingidos por Barragens foi admitida como litisconsorte ativa. Em 09 de outubro de 2024, foi deferido o ingresso do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul – MPRS na lide, como amicus curiae, à vista da manifestação favorável do MPF e ausência de oposição pela ANAB.

Em 17/12/2024, foi realizada nova audiência de conciliação referente à Ação Civil Pública nº 50023914620244047114/RS e aos processos a ela relacionados. A audiência compilou esclarecimentos acerca do programa habitacional denominado de Compra Assistida, disponibilizado pela União para as famílias atingidas pelas enchentes, em especial relativamente aos nove municípios do Vale do Taquari que são partes na Ação Civil Pública: Encantado, Muçum, Roca Sales, Arroio do Meio, Lajeado, Cruzeiro do Sul, Estrela, Bom Retiro e Colinas.

*Legislação citada: Artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), Código Florestal (Lei Federal 12.651/2012), PNMC Lei n. º 12.187/2009, Lei 6.938/81, Lei n. º 12.608/2012, Lei n. º 12.334/2010, Lei Estadual nº 10.350/94 (RS), Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade).

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